Escolha uma Página

Governo lança URV e partidos preparam mudanças no plano

No primeiro dia em que a URV estava em vigor, os jornais refletiram as expectativas do país. O mercado recebeu a notícia com tranquilidade e sem grandes oscilações – até porque a URV vinha sendo noticiada desde dezembro, e nada no plano surgiu como surpresa. Enquanto isso, as oposições se movimentavam para pressionar por mudanças no plano.

Uma reportagem do Estadão revelou bastidores das reuniões que ocorreram no fim de semana para convencer Itamar Franco a assinar a medida provisória 434, de 27 de fevereiro de 1994, que lançou a URV: irritado com proposta do ministro Walter Barelli, que deseja interferir na conversão de preços, FHC chegou a pedir demissão duas vezes.

Em paralelo, a Folha adianta que Fernando Henrique procurava um sucessor para o ministério da Fazenda. Nomes cogitados até então eram Tasso Jeiressati e José Serra, ambos do PSDB. Em março, FHC deixaria o cargo para disputar as eleições de outubro – ao Senado, se plano desse errado; à presidência, em caso de sucesso.

Os jornais traziam ainda artigos de opinião sobre o Plano. O colunista de economia Joemir Beting dizia que a URV seria um “sonho de uma noite de verão”. Já o então deputado federal Roberto Campos, ícone liberal no Congresso daquele final de século XX, estava bastante cético: pedia privatizações e reformas estruturantes mais ousadas, acusando o plano de ser eleitoreiro.

Confira o artigo de Roberto Campos publicado na Folha de São Paulo em 1º de março de 1994:

A moeda hermafrodita, por Roberto Campos

O Plano FHC apresenta várias falhas genéticas no tratamento da moléstia inflacionária:
> Só trata da procura, ignorando medidas de expansão da oferta.
> Prefixa um objetivo inadequado: o déficit zero. O país precisa de um superávit operacional (ou da privatização de estatais)
> Propõe um remendo fiscal, que se auto-intitula Fundo Social de Emergência. Urge uma reforma fiscal que encaminhe soluções duradouras.
> Nada diz sobre a reforma da Previdência Social, o que torna pouco crível o déficit zero, pois o sistema está em situação falimentar.
> Deixa intactas no sistema tributário três funestas sobretaxações: a das empresas, a da mão-de-obra e a dos equipamentos. Isso alimenta a inflação de custos e deprime a oferta. Relega para um futuro indefinido as reformas fundamentais de desregulamentação e privatização, sem as quais a estabilização é inviável.

Essa combinação de remendos tributários, terrorismo fiscal do dr. Osiris Lopes, secretário da Receita Federal, e invenção da URV está longe de constituir um programa de estabilização. Certamente haverá uma expansão da economia informal, algum efeito recessivo e um amortecimento temporário da inflação.

O governo gastou enorme capital político e energia operacional para obter a emenda constitucional que criou o Fundo Social de Emergência. Teria alcançado, a meu ver, resultados estruturalmente mais convincentes se usasse esse poder de fogo para acelerar a tramitação no Congresso de projetos fiscais simplificadores, como o do deputado Luís Roberto Ponte. E se concentrasse esforços na abolição do monopólio de telecomunicações que, segundo pesquisas recentes, é rejeitado por dois terços do Congresso. Exerceria enorme impacto psicológico desinflacionário, se começasse a vender em Bolsa ações de controle da Light e da Vale do Rio Doce, fazendo caixa para o Tesouro e abrindo espaço para o setor privado, pois o problema não é financiar o Estado, e sim reduzir o Estado.

A URV só será confiável se estritamente atrelada ao dólar. E a dolarização, ela própria, só é confiável se acompanhada de uma regra de emissão; o governo ficaria, como na Argentina, proibido de emitir, exceto segundo a variação das reservas. Isso implicaria dar-se independência ao Banco Central, ou, melhor ainda, criar-se um enxuto “currency board”. Este seria responsável exclusivamente pela estabilização de preços, sem qualquer outro objetivo ou responsabilidade. Isso nos traz de volta ao velho problema. Sem um superávit fiscal ou privatização maciça, o governo não pode renunciar ao poder de emitir.

O BC tornou-se devasso emissor e construiu em Brasília um suntuoso palácio da inflação. Seus presidentes declararam-se homens de confiança dos ministros da Fazenda. E seu funcionalismo hoje lidera a inflação de custos salariais do setor público…

A percepção dos agentes econômicos é que o Brasil não aprendeu ainda o fundamental sobre o controle da inflação. Sem dúvida, aprendemos alguma coisa desde o Plano Cruzado: o déficit fiscal é importante e os controles de preços são perigosos. Mas isso é pouco.

O que a URV fará é permitir uma administração cosmética melhor da febre inflacionária. Os índices visíveis de inflação baixarão sensivelmente à medida que a URV ficar atrelada ao dólar e o BC queimar reservas para segurá-lo. A consequência será uma retração das exportações, um dos poucos setores ainda dinâmicos da economia.

Algumas condições certamente são mais favoráveis do que na época do Plano Cruzado, do qual somos alunos repetentes. As reservas cambiais são mais robustas e a situação fiscal bem mais administrável. Por isso o experimento FHC pode durar tempo suficiente para criar um clima eleitoral adequado para o PSDB, o partido das indecisões unânimes, da mesma que forma que o Plano Cruzado deu vitória ao PMDB, trazendo-nos a seguir a moratória de 1987 e a Constituição leprosa de 1988.

Teremos pela proa alguns eufemismos. Não se fala mais em tabelamento de preços e sim em supervisão dos oligopólios. Estes são a última adição à nossa demonologia: antes eram os trustes do petróleo, o polvo canadense, o FMI e as multinacionais. Ainda não chegou o tempo de reconhecermos que o verdadeiro demônio é a Casa da Moeda. E os vice-demônios os monopólios estatais.

O paradoxal é que os economistas monetaristas hoje acreditam que o problema brasileiro é insolúvel sem reformas estruturais, como a realocação de tributos e funções entre a União e subunidades federativas, a reforma previdenciária, a privatização, a desregulamentação e maior abertura internacional. São os antigos estruturalistas que hoje acreditam num macete monetário, como o atrelamento dos preços à URV e desta ao dólar. A URV me parece um produto hermafrodita. É um misto de indexador assexuado e moeda nova transitória.

E o Brasil? Ora, o Brasil continuará sendo aquele país que tem um grande futuro no seu passado…

Todos os direitos reservados. Proibida a cópia ou reprodução do conteúdo sem autorização expressa.

Cadastre seu e-mail para receber conteúdo exclusivo:

Obrigado! Você receberá as novidades por e-mail

Share This